28.11.08

Hedwig and the Angry Inch

Uma mulher de aparência incomum caminha rapidamente para uma porta. Seu ostentoso cabelo, estilo “Farah Fawcett” plastificado chama atenção. Ela entra num bar sujo, do tipo “beira de estrada freqüentado por famílias”, abre suas asas escandalosas e, ao som de estrondosas guitarras, se apresenta: “Você não me conhece, Kansas City. Eu sou Hedwig!.

As próximas cenas são uma composição extasiante, repleta de emoção, deslumbramento, ódio, humor, amor... Assim é Hedwig, a protagonista do musical que contém a trama mais inusitada e original dos últimos tempos.

Hansel nasceu na Alemanha Oriental, se apaixonou por um soldado estadunidense, fez uma cirurgia de troca de sexo para se casar e fugiu para a “terra da liberdade”.

O jovem que cresceu ouvindo a rádio das forças armadas – Debbie Boone, Anne Murray, Toni Tenille, Iggy, Lou, Bowie... – se transforma em Hedwig. Entretanto, a cirurgia, mal sucedida, o deixa com as genitais deformadas. Fato descrito furiosamente na elétrica “Angry inch”.

Já nos EUA, ele sofre outras maneiras de mutilação, se tornando uma pessoa amarga, solitária, desiludida e também o maior fenômeno atual do glam rock, ou quase...

Tommy Gnosis, um moleque de aparência andrógina, porém menos chocante é o fenômeno. Ele foi instruído e batizado no mundo do rock por Hedwig e começou a fazer sucesso após terminar o relacionamento que tiveram.

Homossexual, travesti, transexual... é difícil relacionar Hedwig a categorias. Ela é símbolo de dualidade, inclassificável, platônica e real. Define o amor como a busca da outra metade, foge da cidade dividida, mas encontra apenas separações. Uma mulher ou um homem que procura compreensão, sem mudar o jeito de ser, para se enquadrar ao “normal”. No fundo o que ela representa e sonha não está tão distante do que todos nós desejamos diariamente: encontrar-se e entender-se como uma pessoa inteira

O filme do diretor, roteirista e ator John Cameron Mitchell – de Shortbus – é uma espécie de ode ao glam rock e uma representação peculiar de como a sexuliadade é complexa e pode ser ao mesmo tempo dor e delícia.


Curiosidades:

John Cameron Mitchell começou a interpretar Hedwig em espectáculos de cabaré, depois passou para circuito off-Broadway.

Podemos considerar o filme como um descendente de “Velvet Goldmine” (1998), de Todd Haynes.


Publicado por Geanini Hackbardt

19.11.08

Pudor é a forma mais inteligente de perversão

"Amarelo das doenças, das remelas,
dos olhos dos meninos,
das feridas purulentas,
dos escarros,
das verminoses,
das hepatites,
das diarréias,
dos dentes apodrecidos...
Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente."

Renato Carneiro Campos: Tempo Amarelo

Amarelo Manga é um mosaico de cores, texturas, sombras e movimentos que ressalta um universo rico, palpável e pulsante. Aos olhos distanciados da realidade "amarela manga", o filme se aproxima do grotesco, do animalesco; como um nó na garganta que não desata. Dirigido por Cláudio Assis, Amarelo Manga é seco, fala do povo, do povo brasileiro, mesmo sem tocar na aridez dos filmes nacionais costumeiramente vistos. É tão nordeste quanto é Brasil: dos subúrbios, da escassez, da miséria, dos palavrões, da sacanagem, da religiosidade, da sexualidade!

Inserida no contexto do Recife Contemporâneo – decadente, marginalizado, tumultuado e sujo, a trama se passa em um velho hotel, o Texas, e no Bar Avenida por onde os personagens do filme surgem como se já estivessem vivos, sem necessitar de nenhuma introdução. E enredam-se numa vivência melodramática de atitudes que extraem dos clichês amorosos e dos gestos espalhafatosos, uma série de possibilidades de solução para suas carências emocionais, porém, mergulhada em contradições.

Lígia, interpretada por Leona Cavalli, é a dona do Bar Avenida. Uma mulher forte, sensível e angustiada com a rotina mesquinha a qual é submetida. É bonita, da cor da manga, mas não suporta as chateações dos bêbados no seu bar, por isso vive só. Isso fica muito claro quando ela diz bem no iniciozinho do filme: “Devia ter encontrado alguém que me mereça, só se ama errado nesse mundo!”. Mal amanhece o dia e Lígia já está de pé – cena inicial do filme. Acorda, se olha no espelho, coloca uma roupa qualquer e abre o seu bar. Arruma mesa por mesa, até chegar o primeiro cliente, a primeira cerveja, e o dia anoitecer – a noite é a melhor parte do dia! “No outro dia, é tudo mesmo a coisa.”. Apesar da reclusão em que Lígia faz questão de se incluir, ela é sempre provocada por pessoas que freqüentam o seu bar. Isaac é um deles! Contrabandista, traficante e apaixonado por atirar em pessoas mortas. Isaac consegue sentir o cheiro e a textura da morte, a ponto de balbuciar-se sobre um defunto. No filme, ele comercializa corpos a troco de drogas.

Lígia no Bar Avenida


Lígia e Isaac no bar
Dunga, interpretado por Mateus, trabalha como cozinheiro no Hotel Texas. Ele representa o homossexual do subúrbio, é a “bichinha”, usa roupas justas e é carinhoso e delicado como uma mulher. Apaixonado por Canibal, Dunga faz de tudo por ele, desde “trabalhos” no terreiro de Candomblé a provocações, armadilhas. Apesar disso tudo, Canibal sabe muito bem o que quer, o que gosta: mulher. Por isso tem duas, a sua esposa Kika - interpretada por Dira Paes, dedicada, amável e religiosa, e Daise, sua amante, sua parceira de cama. Cria-se, portanto, dois esteriótipos da figura feminina neste momento: a mulher dedicada e pura, que usa roupas largas, compridas, cabelos presos, preservada; e a mulher reprodutora, carnal, sedutora, boa de cama, a prostituta, o fim do dia. Canibal ama sim Kika, mas não consegue possuí-la, já a Daise é vista como algo passageiro, mas não consegue livrar-se dela. Canibal trabalha em um matadouro. A cena mais dura e indigesta é quando mostra um boi sendo cruelmente morto. Não foge nenhum detalhe à câmera, tudo é capturado. Confesso que foi muito mais angustiante assistir a esta cena do que outras tão fortes como a do estupro, de Irreversível. O conflituante é que Kika não suporta carne e tem enjôos ao cozinhá-las para Canibal. É como se o símbolo “carne” fosse tão pecaminoso como o ato sexual, carnal, o qual Kika, como uma religiosa fervorosa, condena.

Dunga



Canibal
Outro personagem importante do filme é o Padre, morador do Texas, possui uma pequena Igreja. É o “filósofo” da favela. Desiludido, o padre não acredita mais nas pessoas. “O ser humano é feito de sexo e estômago”. O amor? O amor está acima de tudo. Na cena em que Dunga o pergunta sobre o amor, se tudo pode ser feito por sua causa, ele diz que sim, “até mesmo a morte”. Mas não nega os prazeres do corpo. Quando uma das moradoras do Texas se engasga durante o almoço, ele não perde a oportunidade de tocar seus seios. Essa mesma moradora sofre de problemas respiratórios, mal sai do quarto porque não agüenta ficar sem seu inalador. E como toda outra qualquer mulher, apresenta carências sexuais e utiliza seu inalador como um vibrador.
Na medida em que Assis apresenta seus personagens, as histórias entrelaçam-se até chegar no momento crucial do filme. Dunga arma uma cilada para Canibal. Ele maliciosamente descobre o encontro entre Daise – já furiosa com a sua situação de amante – e Canibal, e assim, envia uma carta através de um menino do bairro para Kika, avisando sobre a traição. Dunga sai mais cedo do trabalho, se arruma no meio do caminho e vai ao encontro de Daise, próximo ao porto. Os dois começam a discutir, mas Dunga dobra Daise com beijos, carícias, sexo. Kika, desacreditada, vai até o local. De longe espiava tudo, até não agüentar mais – não concebia a traição – e armou um escândalo: arrancou um pedaço da orelha de Daise. Arrancou o pedaço que acabaram de arrancar-lhe do coração. Desesperada, Kika não volta para casa. Enquanto isso, no hotel Texas, seu Bianor, dono do hotel, falece. Dunga fica responsável por todas as providencias: papelada, velório, caixão. A morte assombrava o hotel e a todos, exceto Isaac que pegou no sono após a porrada que levou de Lígia. Dunga até tentou acordá-lo, mas Isaac não é um homem fácil de lidar, arrogante, presunçoso, só pensava em Lígia, e na vagina em que ela o mostrara no bar - vide capa do filme. Durante o velório, Isaac se estremece ao ver o corpo de seu Benor, mas não era aquele o seu lugar.
Quando voltava para casa, Kika encontra Isaac no carro, entrou no carro e se entregou a ele como talvez nunca tenha se entregado a Canibal. Transaram a noite inteira. Gritos, sussuros, de frente, de lado, de quatro. Entrega mútua: Isaac se rende ao prazer do corpo, do anus. Existiam naquele quarto apenas dois corpos cientes do prazer que o corpo podia proporcionar. Nada mais.
Na manhã seguinte, Kika vai ao salão. No meio do caminho, solta os cabelos, a blusa, a crença e tudo o que há anos a prendia. Pede para cortar e tingir o cabelo. “Somente as pontas? Um loiro escuro?” “Não, eu quero é amarelo, amarelo manga”.

13.11.08

Primavera e sexualidade

Ouça o podcast "Primavera e Sexualidade" produzido por Bárbara, Geanini e Talita (por "coincidencia" colaboram com o blog!), que consiste em uma entrevista com Raul Gondim, coordenador do grupo Primavera nos Dentes, e várias dicas de filme!
Ficha Técnica:
Roteiro: Bárbara Gegenheimer e Talita Aquino
Edição: Bárbara Gegenheimer, Geanini Hackbardt e Talita Aquino
Produção: Bárbara Gegenheimer
Sob orientação do Prof. Carlos d'Andréa


15.10.08

Assuma a posição!



Uma história de amor! Desconcertante, bizarra (em alguns pontos de vista), inusitada, mas incrivelmente romântica. O enredo do filme Secretária (2002) de Steven Shainberg (mesmo diretor de A Pele) pode ser resumido (ou reduzido) a isso. Com uma escolha de tema polêmico e atores excepcionais em seus papéis, o longa trata questões como auto-flagelo, sado-masoquismo, alcoolismo, neuroses e as mais profundas erupções da alma humana com um estilo doce, carinhoso e apaixonante.

A primeira cena do filme é estonteante. Os olhos viajam por uma imagem pictórica, um cenário colorido e charmoso, digno de palácios de contos de fadas, por onde desfila Lee Holloway (personagem de Maggie Gyllenhaal). A elegância do andar, do olhar e do “flutuar” pelos corredores do recinto é contrastada com a rudeza das correntes que prendem seus braços - como uma cruz. Lee efetua seu trabalho: Secretária. Ao fechar a porta no fim do corredor o filme passa para um flash-back e as dúvidas vão começar a ser esclarecidas, ou somadas. Shainberg vai brincar com a cabeça, com o corpo e com o coração de quem assiste... com a sociedade que retrata e a qual se dirige.


Saindo de um hospital psiquiátrico, a franzina, esquisita e aparentemente frágil e assustada Lee volta para casa. A família da moça é apresentada logo de cara. A mãe histérica (Lesley Ann Warren), o pai alcoólatra (Stephen McHattie) e a irmã (Amy Locane) que se casa e continua na casa dos pais. Durante a festa de casamento iremos descobrir a primeira dica sobre a enigmática figura de Lee. Envolta por um cenário cheio de cores e contrastes (que acaba trazendo à memória um pouco das construções de Almodóvar), a percepção de que o pai está novamente bêbado leva a moça a subir para o quarto. Incrivelmente infantil, o cômodo é recoberto por roxos e rosas, bibelôs e brinquedos. Embaixo da cama está a caixinha, bordada com borboletas e bailarinas. Lee, delicadamente, abre a caixa e observamos diversos objetos pontiagudos e cortantes. Ela escolhe um e pressiona contra a perna. Lee precisa se auto-flagelar. Mas isso é apenas a introdução de algo muito maior.


Lee decide procurar um emprego. E após fazer um curso de datilografia o trabalho de secretária parece ser o ideal. Guiada por anúncios em jornais, a personaagem vai trabalhar no escritório do Dr. E. Edward Grey (James Spader). O advogado é obcecado com organização, perfeccionismo e limpeza! Quando Lee chega ao seu escritório para uma entrevista (trajando uma capa de chuva que lembraria a chapeuzinho vermelho, se não fosse roxo) ela cruza com uma moça indo embora com o aspecto de quem tinha chorado. O interior do recinto está todo bagunçado e após conversar com Gray sobre a vaga ela é admitida. Chapeuzinho entrou na casa da vovó e não percebeu que ela era o lobo mau. Ou percebeu....


Enquanto se esforça para agradar o chefe e manter o emprego, Lee mantém um relacionamento com um antigo amigo de escola Peter (Jeremy Davies) e procura amenizar a dor ao ver o pai se entregando ao alcoolismo com seções de auto-flagelo.


Mas no escritório Gray vai se tornando cada vez mais sádico e exigente com ela. E aos poucos o diretor Shainberg vai delineando a personalidade do advogado. Suas seções de exercícios físicos, seu cultivo de flores e seus cuidados com as canetinhas vermelhas. O enredo vai colocando Lee e Gray cada vez mais unidos e mais distantes do resto dos personagens. O lobo mau vai se tornando um objeto de obsessão e exemplo. Seguindo seus conselhos Lee passa a tornar-se dona de si mesma, ele a “permite” voltar pra casa sozinha (e não mais com a mãe), ele recrimina suas roupas e suas manias. Dessa forma, a secretária vai transformando-se, de início desengonçada a charmosa e sensual. Com Gray, Lee não precisa mais flagelar-se.




O ápice do filme se inicia em uma das correções de Gray a um texto datilografado por Lee. Após usar as canetinhas vermelhas para circular o erro ele a chama. “Assuma a posição!” Lee fica debruçada sobre a mesa e, a pedido do advogado, começa a ler o texto em voz alta. Á medida que ela lê, ele vai lhe dando palmadas nas nádegas, cruelmente. Como um pai a um filho, como o dono a um animal desobediente, como o chefe ao empregado. Está criado e laçado o encontro entre os dois, o pacto que os unirá. O medo de Lee se confunde com o seu próprio desejo. Sádico e masoquista descobrem-se sem planejar. Como homem e mulher!

A partir daí o Sr. Gray povoará os sonhos de Lee. Seu namoro com Peter não trará, para ela, prazer algum, apenas comparações (destaque para a cena em que Lee tenta fazer com que Peter a bata, mas ele não entende e tenta transar com ela).





As peripécias entre o casal vão se estendendo às mais variadas fantasias que, no entanto, não demonstram (ainda) aspectos sexuais. Os dois se desejam e nesse convívio a secretária começa a provocar os erros de digitação para ser “tocada” pelo chefe. Eles estão envolvidos, mas Gray não consegue conceber esse tipo de relação e foge – em busca de outro corpo para explorar e não se sentir culpado. Brigando contra sua própria natureza.

Abandonada e saindo do escritório como outrora havia visto a outra moça, Lee desmorona. Percebe-se apaixonada por Gray e ciente do tipo de relação que a dá prazer. Nessa trajetória ela busca encontrar outros “amantes” ao seu modo, mas nenhum que a encaixe. Ela vai rumando ao fim, trilhando os passos de Shainberg, que guia também Spader e seu personagem.


Maravilhosamente composto pela trilha sonora e fotografias estonteantes e envolventes, Secretária é um filme com final feliz. Não há uma intenção de solucionar ou romantizar o final, mas de naturalizar. O importante é a percepção de que não se pode estabelecer juízos de valor sobre o relacionamento de Lee e Gray, apenas naturalizá-lo, como um romance estranho, difícil, cheio de altos e baixos, como qualquer outro.


Se o olhar de Maggie Gyllenhaal para a câmera, no fim, não demonstra a realização ou felicidade plena, isso não diminui em nada o processo de aceitação de si mesma, de doação ao outro e de auto-conhecimento que a personagem passou. Não deixa de mostrar como é possível encontrar-se a si mesmo em outro e dividir as mais profundas intimidades. Define a construção das relações sociais (e amorosas) da atualidade, do mundo no qual vivemos hoje. Revela a procura infinita pelo amor e pela “outra metade”. É como se Shainberg quisesse dizer “Tudo bem, ela não está totalmente feliz. Mas quem está?”


Certamente, Secretária é um filme imperdível! O que poderia ser bizarro e ridículo foi tocado com tamanha maestria e sensibilidade que pode fazer chorar. É um filme para se ver com a mente e coração abertos. É entender que sexualidade está em cada um e não em conceitos.



Publicado por Talita.


“Assuma a posição!”




Outras Críticas: 1, 2, 3.

Assista ao trailler do filme:



1.10.08

Entre, além e através das convenções sexuais (Parte II)


Aprecie trecho do filme "La Luna"!
Postado por: Bárbara e Talita

Assistam! Afinal, voyerismo é participação... (Parte II)


Nova Iorque não poderia ser mais sensível, se não pós 11 de setembro. Costumeiramente chamada de “a cidade da liberdade”, a nova Iorque se configura também por vislumbrar sua, sim, possível finitude, principalmente após a queda das torres gêmeas, e conseqüentemente, dos valores da sociedade norte-americana.

Shortbus, novo filme do diretor John Cameron Mitchell (Hedwig and the Angry Inch), tem como plano de fundo a plasticidade novaiorquina, muito bem representada pelo panorama colorido de prédios iluminados produzidos digitalmente na introdução do filme. Maravilhosamente decorada pela música Is you is or is you ain’t my Baby? na voz de Anita O’day.
Cores, sons, luz, e muito sexo, ou melhor, sexualidade. O diretor deixa bem claro o objetivo de seu longa na primeira cena, mostrando, através de recortes, a Estátua da Liberdade: boca, mãos, pés, olhos, cavidades e superfícies fálicas...
Mas o que seria ShortBus? O nome é baseado nos famosos ônibus escolares americanos. Na frase de um personagem, enquanto aquele é o grande ônibus amarelo, o clube underground seria o pequeno. ShortBus é o lugar aonde estão juntos os dotados e os desajeitados, que buscam, tão além de sexo, uma identidade. São pessoas diferentes, com anseios distintos, mas que se apropriam daquele espaço como uma válvula de escape. Heterossexuais, Homossexuais, Bissexuais, estão presentes em Shortbus, representando muito mais do que meros personagens, mas identidades reais de Nova Iorque, que sabem que tudo pode acabar a qualquer instante.

Ainda na introdução a câmera passeia pelos apartamentos, tão irreais em sua digitalidade, mas não menos bonitos de se ver. Dentro dos cômodos os personagens são apresentados sem cerimônias, no que poderíamos chamar de seus “momentos mais íntimos”. As cenas são de chocar os olhos mais adestrados. A nudez, o sexo, o sado-masoquismo. A sexualidade. Nua e crua, no seu sentido mais carnal. A aceleração do ritmo da música é também a aceleração do ritmo dos corpos, dos suspiros, dos gritos, do esforço. Em uma dinâmica que termina no gozo, porém, um gozo triste, obtido no extremo limiar entre o prazer e a dor. Extraído do choro da personagem James (interpretado por Paul Dawson) - de longe observado por um “vizinho”, do “easy, easy” (devagar, devagar) da personagem Sophia (Sook-yie Lee) e da conversa entre a Dominatrix Severin (Lindsay Beamish) e seu cliente “Você se sente triste depois? – Sim. Porque o tempo não parou e eu não estava sozinha”.

Michell já expõe aí seu jogo, mostra suas cartas para que o espectador decida entrar no jogo ou não. Mas, talvez o diretor tenha realizado um grande blefe... e porquê?

A partir daí o filme irá desenvolver sua trama e envolver ainda mais as personagens. Saberemos que James é homossexual e que namora Jamie (PJ De Boy) há alguns anos, e que os dois não tem um relacionamento tão perfeito quanto aparenta. Sophia, que protagoniza uma cena de sexo invejável é uma terapeuta sexual (que prefere ser chamada de “conselheira de casais”) e nunca teve um orgasmo. E, Severin, nunca conseguiu ter um relacionamento duradouro ou pelo menos importante.
Neste ponto saímos do âmbito aprisionador do sexo e passamos a discutir sexualidade. E John Cameron Michell vira o jogo! Shortbus não é um filme de pornografia e nem quer falar exclusivamente de sexo. Shortbus é uma celebração, um vislumbrar e um naturalizar a sexualidade!
As frustrações, os desejos, a irrealidade de suas próprias vidas leva as personagens ao “bar” chamado Shortbus, cuja figura central é certamente Justin Bond, o/a recepcionista.
Um lugar onde não é preciso fingir (a não ser que queira), dissimular ou evitar. O ambiente propício para realizar desejos, fugir do mundo, encontrar amigos e, o mais importante, encontrar-se. Entre os cômodos é possível ver filmes, ouvir músicas, brincar, usar drogas, conversar e, porque não, transar. Justin Bond explica bem: “É como na década de 60, mas com menos esperança!”.


Esse cenário é envolto em uma naturalidade nas relações entre as pessoas que parece ser inacreditável existir uma realidade assim. Nesse momento o ator Alan Mandell, que interpreta o ex-prefeito de Nova Iorque, surge com o mais belo diálogo do filme e apresenta o termo (crucial ao filme) “Permeabilidade”.
As tentativas de resolução dos problemas de cada personagem são cada vez mais frustradas e o espectador consegue ir percebendo que todos estão ligados por um problema único: a incapacidade de sentir. James nunca se deixou ser penetrado, Sophia considera o orgasmo uma mentira, Severin procura um relacionamento estável. Todos vão se afundando em seus próprios problemas e encontrando a semelhança de suas dores nos outros. Na fala de Severin “É difícil não sentir nada na vida, não é?”
Shortbus é uma celebração, como já dissemos antes. À vida, à sexualidade, ao amor. É o lugar onde todos vão encontrar não a solução de seus problemas, mas algumas portas ou janelas – algumas conexões e alguns curtos circuitos. Um lugar onde se aprende a ser permeável – deixando entrar o novo e o velho. A charmosa e desejável luz de velas quando todo o resto parece estar escuro.





and as your last breath begins
you find your demon's your best friend
and we all get it in
the end


(Scott Mattew – In the end)



Destaque para: Trilha Sonora
Construção do filme
Outras críticas: 1, 2.


Postado por: Bárbara, Talita e Geanini

23.9.08

Entre, além e através das convenções sexuais



Pensar em sexualidade também é defrontar com outros tabus muito mais, digamos, "severos" estabelecidos pela sociedade, pela ética e principalmente pela moral. Afinal, aonde se encaixa o incesto, que além desta palavra feia, é amor. E por que não?

Em "La Luna" de 1979, o diretor Bernardo Bertolucci soube , mesmo sem pretenções, humanizar a compreensão do que conhecemos hoje por Complexo de Édipo, bem como o sofrimento de uma mãe por um filho, que na trama, foi capaz de se doar até mesmo fisicamente.

Caterina Silveri, interpretada por Jill Clayburgh, é uma famosa cantora lírica que após a morte de seu marido, decide mudar-se de Nova Iorque para a Itália (sua cidade de origem ), junto de seu filho, Joe, interpretado por Matthew Barry.

Condenado à ausência de seu verdadeiro pai na infância e pela perda do padrasto na adolescência, Joe perde a sede pela vida, e tenta passar por cima do vazio e da solidão, com drogas. Enquanto isso, sua mãe passava dias e noites em seus ensaios e trabalhos. Somente no dia da festa do aniversário de Joe, Caterina descobre que Joe utiliza drogas, e a partir daí La Luna se enche ainda mais de amor, sim!

Se costumeiramente uma mãe é capaz de se entregar " de corpo e alma" para seu filho, a fim de protege-lo e tentar manter toda a estabilidade uterina, Caterina atravessa a relação mãe-filho e na tentativa de compreender toda a dor de Joe, inicia um relacionamento muito mais sexual do que meramente afetivo. E é amor. Masturbação, carícias, beijos e brigas, muitas brigas.

Li neste site que amor de mãe é "inabalável, a tudo suporta e supera" e Caterina não seria, senão essa força maior, Luna, como um forte. Se o sentimento de Joe é explicável ou não por Freud, encarrego à psicologia. Mas quem é capaz de julgar ou intervir no amor de Caterina?

Bertolucci não deixou a desejar em momento algum em La Luna, seja pelas cenas sexuais entre Caterina e Joe, seja pelo relacionamento afetivo entre os dois - quando Joe realiza um jantar para sua mãe, ou pelas brigas e ciumes entre ambos.

Vale a pena conferir e refletir La Luna. Bela exposição fotográfica, diálogos sinceros, e interpretação insdiscutível. O incesto é um tema relacionado à sexualidade pouco abordado e muito temido, mas que não deve ser deixado de lado ou acometido.

Leia também no Museu do Cinema algumas curiosidades sobre La Luna e sobre Bertolucci!